sábado, 29 de outubro de 2011

Meditacoes - Bezerra de Menezes - Chico Xavier

BEZERRA DE MENEZES


Bezerra de Menezes

Bezerra de MenezesAdolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti nasceu na Freguesia do Riacho do Sangue, hoje Jaguaretama (CE), em 29 de agosto de 1831. Educado dentro de padrões morais rígidos, formou-se em 1856 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e tornou-se mais que médico: missionário. "Um médico não tem o direito de terminar uma refeição, nem de perguntar se é longe ou perto, quando um aflito qualquer lhe bate à porta”, escreveu. Para ele, o doente representava o anjo da caridade que lhe vinha fazer uma visita e lhe trazia a única moeda que podia saciar a sede de riqueza do Espírito. Seus gestos de bondade e sua infatigável compaixão tornaram-se lendários.
A carreira política de Bezerra de Menezes iniciou-se em 1861, quando foi eleito vereador municipal pelo Partido Liberal. Na Câmara Municipal da Corte desenvolveu amplo trabalho em favor dos mais pobres. Foi reeleito para o período 1864-1868 e elegeu-se Deputado Geral em 1867.
Filme sobre a vida de
Bezerra de Meneses
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Novamente foi eleito vereador em 1873. Ocupou o cargo de presidente da Câmara, que atualmente corresponde ao de prefeito do Rio de Janeiro, de julho de 1878 a janeiro de 1881. Nessa época, a intensificação da luta abolicionista teve a adesão de Bezerra, que usou de extrema prudência no trato do assunto.
No dia 16 de agosto de 1886, o público de duas mil pessoas que lotava a sala de honra da Guarda Velha, no Rio de Janeiro, ouviu, silencioso e atônito, o famoso médico e político anunciar sua conversão ao Espiritismo. Uma comoção. Reformador publicou a íntegra da conferência nas edições de setembro, outubro e novembro daquele ano. O contato com a Doutrina Espírita ocorrera dez anos antes, quando Joaquim Carlos Travassos, que fez a primeira tradução das obras de Allan Kardec, presenteou Bezerra com um exemplar de O Livro dos Espíritos. O episódio foi narrado pelo próprio Bezerra: "Disse comigo: ora, adeus! Não hei de ir para o inferno por ler isto... Depois, é ridículo confessar-me ignorante desta filosofia, quando tenho estudado todas as escolas filosóficas. Pensando assim, abri o livro e prendi-me a ele, como acontecera com a Bíblia. Lia. Mas não encontrava nada que fosse novo para meu Espírito. Entretanto, tudo aquilo era novo para mim!... Eu já tinha lido ou ouvido tudo o que se achava n´O Livro dos Espíritos. Preocupei-me seriamente com este fato maravilhoso e a mim mesmo dizia: parece que eu era espírita inconsciente, ou, mesmo como se diz vulgarmente, de nascença".

Desde então, sua vida foi dedicada ao Espiritismo. Escritor refinado, passou a assinar artigos com temas espíritas. Aos domingos, escrevia no jornal então mais lido do Brasil: O Paiz. Sob o pseudônimo Max, assinava a série "Estudos Filosóficos - O Espiritismo", que escreveu ininterruptamente de novembro de 1886 a dezembro de 1893. Seus textos, inclusive os publicados noReformador, marcaram época pela dignidade e coragem com que defendia seus pontos de vista e o Espiritismo. Em 1889 assumiu pela primeira vez a Presidência da FEB e iniciou o estudo metódico, semanal, de O Livro dos Espíritos. Entre os diversos livros que escreveu, constam trabalhos doutrinários, políticos e históricos. Todos deixam transparecer a preocupação com os desfavorecidos. Traduziu Obras Póstumas, de Allan Kardec.
As divergências se multiplicavam entre os espíritas brasileiros. De um lado os chamados "místicos" e de outro os "científicos". Em 1895, Bezerra de Menezes foi lembrado como o único nome capaz de unir os espíritas. Em 3 de agosto daquele ano, assumiu pela segunda vez a presidência da FEB, cargo que ocupou até a sua desencarnação. À frente da Casa, imprimiu uma orientação acentuadamente evangélica aos trabalhos e recomeçou o estudo de O Livro dos Espíritos. 
No início de 1900, Bezerra de Menezes foi acometido por uma congestão cerebral. Grande número de visitantes de todas as classes sociais acorria à sua casa diariamente. Em 11 de abril de 1900, às 11h30, desencarnou, no Rio de Janeiro. Seu inventário – localizado no ano passado, pela Assessoria de Comunicação da FEB, no Arquivo Nacional – revela a pobreza que vivia: nada deixou de material para a família.
Como Espírito, prossegue na vivência plena da caridade e da humildade: levantando os abatidos, consolando os curvados sob as provas terrenas, orientando espíritos endurecidos, inspirando indulgência. Sua assistência bondosa pode ser sentida nos livros e mensagens que ditou a Francisco Cândido Xavier, Yvonne Pereira e outros médiuns. Tradicionalmente, durante a reunião anual do Conselho Federativo Nacional da FEB, pelo médium Divaldo Pereira Franco, ele fala ao Movimento Espírita: continua a convidar os espíritas à união fraterna, perfumando as almas com seus exemplos de mansidão, devotamento, benevolência e perdão.
Nota: a foto não consta do texto original e foi inserida pelo KSSF.

Rede Mundo Maior de Televisão

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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

T.A.P.S.: "Retorno ao Stanley Hotel 5" (Ghost Hunters) Caçadores de fant...

 Chico Xavier e a cultura brasileira 1

Bernardo Lewgoy Professor do Departamento de Antropologia UFRGS


RESUMO: O presente artigo propõe uma interpretação do fenômeno Chico Xavier na cultura e na sociedade brasileira. A partir do reconhecimento da importância crucial de seu modelo mítico de espírita exemplar, o lugar de absoluto destaque ocupado pelo médium mineiro na história do kardecismo brasileiro será interpretado à luz de um código cultural articulado em sua biografia, que busca sintetizar os personagens paradigmáticos do "santo" e do "caxias". Desdobrado na unidade de sua obra mediúnica e trajetória pública, o tipo de espiritismo construído em Chico Xavier evidencia a proposta kardecista dominante ao longo do século XX, enquanto modelo de cidadania, prática religiosa e projeto nacional.
PALAVRAS-CHAVE: espiritismo, Chico Xavier, religião, cultura brasileira.


Exatamente um ano após a partida de minha mãe eu fazia parte de um grupo de pessoas que, com Chico Xavier à frente, participavam de uma peregrinação a um bairro humilde de Uberaba.
Fazia-se o "culto do Evangelho no lar" em frente a um casebre previamente escolhido e ao ar livre.
A circunstância de me achar ali na condição de um forasteiro em visita a uma cidade bela e acolhedora não me impediu de observar e registrar mentalmente algo que, desde logo, me pareceu significativo. Ante aquelas seis ou sete centenas de criaturas humildes, com dezenas de crianças maltrapilhas ou seminuas, a figura simples e veneranda do médium de Uberaba, ele próprio a encarnação da humildade pregando a céu aberto e em amplo contato com a natureza, me parecia a genuína revivescência dos primeiros cristãos na Terra, lembrava a figura de São Francisco de Assis junto aos pobres da Úmbria. (Worm, 1993: 55 )
Autor de prodigiosa obra literária, que ultrapassa os 400 livros psicografados em setenta anos de produção e contando com milhões de leitores em diversos países, Francisco Cândido Xavier ¾ conhecido como Chico Xavier¾ é a principal referência do espiritismo no Brasil. É minha intenção interpretar as linhas básicas da trajetória social e religiosa de Chico Xavier à luz da relação entre cultura letrada e espiritismo kardecista no Brasil, considerando-se que a aparição do médium mineiro mudou a face da crença e das práticas espíritas no século XX.
O lugar de destaque absoluto de Chico Xavier no espiritismo brasileiro, o nível de fabulação em torno de sua vida por parte de seus leitores, admiradores, adversários ou simplesmente curiosos, a redundância das histórias contadas numa razoável quantidade de biografias escritas, tudo isto sugere a operação de um esquema mítico. Ponto de inflexão na história do movimento espírita, o mito Chico Xavier opera em mais de um nível, tendo contribuído tanto para firmar um paradigma de práticas religiosas não anteriormente estabelecidas, como o "Culto do Evangelho no lar", quanto para estabelecer um conjunto autônomo de referências para a escrita espírita no Brasil, a partir dos anos 40. Saliento que, ao interpretar algumas linhas mestras da construção mítica em Chico Xavier, não tenho um interesse historiográfico ou mesmo de biógrafo em "diferenciar a vida da obra". Ambas pertencem ao mesmo "texto" como camadas indissociáveis de uma construção narrativa elaborada socialmente. No entanto, chamo atenção para determinadas repercussões concretas, sociais e históricas, da circulação de idéias, narrativas e textos de sua autoria, na medida em que impliquem novidade e transformação na consciência e na prática do kardecismo no Brasil.
A vida e a obra de Chico Xavier se conjugam não apenas por se tratar do maior médium do país, ou porque sua trajetória religiosa se confunde com os rumos do espiritismo brasileiro ou ainda porque seus livros psicografados se apresentam como testemunhos religiosos2. Isto ocorre porque o nexo entre uma vida devotada a uma missão e a obra escrita mediúnica é geralmente lido no registro do extraordinário, do mítico e do santificado, apesar da oposição doutrinária de muitos espíritas e do próprio Chico Xavier ao "culto dos santos". Em qualquer leitura, trata-se de um personagem cercado de uma aura paradigmática, depositário e modelo biográfico de uma proposta religiosa de alta ressonância na sociedade brasileira, além de ter cumprido um papel central na criação de um espiritismo "à brasileira". Maior protagonista da história do kardecismo no Brasil moderno, sua trajetória ilustra os dilemas enfrentados por esta alternativa religiosa ao longo do século XX, principalmente no que tange ao sincretismo de sua proposta com a "cultura católica brasileira" 3 e com um certo modelo de Estado-Nação.
Chico Xavier é o espírita modelar porque praticamente tudo em sua vida e obra dão testemunho do sistema de valores do espiritismo kardecista, além de realizar, como nenhum outro médium, o ideal de uma "interautoria" ou parceria autoral psicógrafo versus espírito.4 Essa parceria, em verdade, é a afirmação de uma dependência voluntária dos homens perante a esfera religiosa, cuja máxima expressão é uma espécie de renúncia a uma vida ordinária, exemplificada pela biografia do médium. Trata-se de um personagem cujos percalços biográficos nunca permitiram que construísse ou "optasse" por uma história individual: ele viveu a sua vida, cumprimento de umamissão programada, no eixo cristão do sacrifício/doação ao outro. Chico Xavier é freqüentemente representado como o "homem coração", o que representa uma renúncia à individualidade material ou à fixação de laços e compromissos numa rede de relações de amizade ou de parentesco. Nesse sentido proponho que o modelo mítico atualizado em sua biografia busca realizar uma síntese entre os paradigmas culturais que Roberto DaMatta (1979) denominou de "renunciante" e de "caxias": dificilmente uma vida reuniu numa única pessoa a renúncia e a adequação resignada às normas de disciplina no mundo secular.
A tentativa de síntese operada entre os paradigmas do "santo" e o do "caxias" expressará, ainda, a composição espírita entre duas vertentes separadas na sociedade brasileira do século XX, cada qual com o seu ethos, a religião e o Estado, o sagrado e a ordem secular. Nesse sentido, sustento que este é um dos dilemas centrais que o mito Chico Xavier elabora, como um problema não apenas do espiritismo mas da própria realização da cultura brasileira no século da problematização de uma identidade cultural para o Brasil.
Inspirado na tradição estruturalista de análise de mitos, destaco o valor paradigmático da infância e da juventude do médium, cuja temporalidade é dotada de maior densidade, atualidade e valor que muitos outros eventos posteriores, na verdade desdobramentos secundários dos grandes temas e episódios ali relatados. Assim, o período formativo de Chico Xavier terá um peso decisivo na explicação de outros períodos, ou seja, a maioria das questões que posteriormente são formuladas ganha uma presença em sua narrativa desde tenra idade.
Muitas biografias e artigos foram escritos sobre Chico Xavier, assim como um incontável número de entrevistas, a imensa maioria escrita por espíritas. Entre as várias consultadas, selecionei as obras de Ubiratan Machado (1996), Suely Schübert (1986), R. A. Ranieri (s. d.), Ramiro Gama (1986) e Marcel Souto Maior (1994), entendendo-as como variações convergentes de uma mesma narrativa mítica5.

Elementos biográficos
Filho de um modesto vendedor de bilhetes de loteria e de uma dona de casa católica e piedosa, Francisco Cândido Xavier nasce em 1910 na pequena cidade de Pedro Leopoldo, em Minas Gerais. A mãe, dona Maria João de Deus, morre quando o pequeno Chico tem apenas cinco anos de idade. Incapaz de criá-los, o pai distribui os nove filhos entre a parentela. Nos dois anos seguintes, Chico será criado pela madrinha e antiga amiga de sua mãe, Rita de Cássia, que logo se mostra uma pessoa cruel, vestindo-o de menina e aplicando-lhe surras diariamente, a qualquer pretexto e, mais tarde, sob a alegação de que o "menino tinha o diabo no corpo". Não se contentando em açoitá-lo com uma vara de marmelo, Rita passa a cravar-lhe garfos de cozinha no ventre, não permitindo que o garoto os retirasse, o que lhe ocasiona terríveis sofrimentos. Os únicos consolos do garoto consistiam nos diálogos com o espírito de sua mãe: o menino viu-a após uma prece, junto à sombra de uma bananeira no quintal da casa. A mãe recomenda "paciência, resignação e fé em Jesus" ao garoto.
A madrinha ainda criava outro filho adotivo, Moacir, que sofria de uma ferida incurável na perna. Rita decide seguir a simpatia de uma benzedeira, que consistia em fazer uma criança lamber a ferida durante três sextas-feiras em jejum, sendo a tarefa atribuída ao pequeno Chico. Revoltado com a tarefa, Chico conversa novamente com a mãe, que lhe aconselha a "lamber com paciência". A mão lhe explica que a simpatia "não é remédio, mas poderia aplacar a ira da madrinha", esta sim colocando em risco a sua vida. Os espíritos se encarregariam da cura da perna. Sarado o irmão de criação, Rita de Cássia melhora o tratamento dado a Chico.
Seu pai casa-se novamente. A nova madrasta, dona Cidália Batista (invariavelmente descrita como uma mulher "generosa", de "grande coração") exige a reunião dos nove filhos, pondo fim à diáspora familiar. Dona Cidália ainda terá mais seis filhos com o pai de Chico, João Cândido Xavier. Por insistência da madrasta, o garoto é matriculado na escola. Nessa época, o espírito Maria João de Deus pára de manifestar-se. Chico começa a trabalhar vendendo os legumes da horta da casa.
Freqüenta poucos anos de escola. Ali, como na igreja, as faculdades paranormais do pequeno Chico continuam a causar-lhe problemas. Durante uma aula do 4o ano primário, Chico afirma ver um homem que lhe dita as composições, mas ninguém lhe dá crédito e a professora não se importa. Sua redação ganha menção honrosa em concurso estadual de composições escolares comemorativas do centenário da Independência, em 1922. Enfrenta o ceticismo dos colegas, que lhe acusam de plágio, aliás, acusação que sofrerá a vida inteira. Desafiado a provar os seus poderes, Chico submete-se com êxito ao desafio de improvisar uma redação (com o auxílio do espírito) sobre o grão de areia, um tema escolhido ao acaso.
Cidália pede que Chico aconselhe-se com o espírito da mãe sobre como evitar que uma vizinha continuasse a furtar hortaliças de sua casa e esta lhe diz para torná-la responsável pelo cuidado da horta. Findam-se os roubos.
Assustado com a mediunidade de Chico, seu pai pensa em interná-lo. O padre Scarzelli examina-o e conclui que seria um erro a internação, tratando-se apenas de "fantasias de menino". Scarzelli simplesmente aconselha a família a restringir as leituras do garoto (tidas como responsáveis pelas fantasias) e a colocá-lo no trabalho. Chico, então, ingressa como operário numa fábrica de tecidos, onde é submetido à rigorosa disciplina de trabalho, função que lhe deixará seqüelas para o resto de sua vida.
Chico pára de estudar e muda de trabalho, empregando-se como caixeiro de venda, ainda em rigorosos horários. Apesar de católico devoto e das incontáveis penitências e contrições prescritas pelo padre confessor, Chico não pára de ter visões e conversar com espíritos.
Aos dezessete anos, em 1927, Chico perde a madrasta Cidália, e se depara com a loucura de uma irmã, que descobre ser causada por um processo de "obsessão espiritual". Orientado por um amigo, Chico inicia-se no estudo do espiritismo, fundando o centro espírita Luís Gonzaga num barracão de madeira de seu irmão. Recebe nova mensagem de sua mãe, na qual lhe é recomendado o estudo das obras de Allan Kardec e o cumprimento de seus deveres. Por ordem dos espíritos mentores, inicia-se na prática da psicografia, que aperfeiçoará nos quatro anos subseqüentes. Pela sua pena começam a manifestar-se diversos poetas falecidos, somente identificados a partir de 1931. Apoiado pela Federação Espírita Brasileira, Chico publica sua primeira obra, Parnaso de além-túmulo, coletânea de poesias ditadas por espíritos de poetas brasileiros e portugueses. A obra causa espécie dentro e fora do movimento espírita. Começa a sofrer ofensas de críticos e adversários. O espírito de Maria João de Deus aconselha-o a não responder aos críticos. Nesse período descobre ser portador de uma catarata no olho, problema que o acompanhará a vida inteira. Os espíritos mentores, Emmanuel e Bezerra de Menezes, orientam Chico para tratar-se com os recursos da medicina humana e não contar com quaisquer privilégios dos espíritos.
1931 é o ano da maioridade do médium e do encontro com seu mentor Emmanuel, "à sombra de uma árvore, na beira de uma represa" (Souto Maior, 1995: 31). Informando-lhe sobre a sua missão de psicografar uma série de trinta livros, Emmanuel lhe diz que são exigidas três condições: "disciplina", "disciplina" e "disciplina". Severo e exigente seu mentor lhe instrui a manter-se fiel a Jesus e a Kardec, mesmo em caso de conflito com a sua orientação. Mais tarde, Chico descobre que Emmanuel havia sido o senador romano Publio Lêntulus, posteriormente renascido como escravo e simpatizante do cristianismo. Na encarnação seguinte seu mentor reencarnaria como o padre jesuíta Manoel da Nóbrega, ligado à evangelização do Brasil.
Em 1932, a publicação do Parnaso de além-túmulo causa espécie entre os literatos brasileiros, cujas opiniões se dividem entre o reconhecimento e a acusação de pastiche. O impacto é aumentado quando se sabe que o livro tinha sido escrito por um "modesto caixeirinho" de armazém do interior de Minas Gerais, que mal completara o primário. Os direitos autorais de suas obras são concedidos à Federação Espírita Brasileira. Inicia a sua relação com Manuel Quintão e com Wantuil de Freitas, prócere da Federação Espírita Brasileira (FEB), responsável pela publicação de sua obra. Chico continua com seu emprego de caixeiro e com suas funções no centro espírita Luís Gonzaga, atendendo aos necessitados com receitas, conselhos e psicografando as obras do além.
Paralelamente, inicia uma longa série de recusas de presentes e distinções, que perdurará por toda a sua vida, como no caso do milionário Federico Figner, cuja vultosa soma concedida em testamento ao médium foi repassada à Federação Espírita Brasileira. Com a notoriedade, prosseguem os ataques de adversários ¾ que tentam desmoralizá-lo ¾ e de inimigos espirituais, que buscam atingi-lo com fluidos e tentações6.
Nos anos 30 as obras mais importantes posteriores ao Parnaso de além-túmulo consistem nos romances ditados por Emmanuel e pela famosa obra atribuída ao espírito de Humberto de Campos, Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho, em que a história do país recebe uma interpretação mítica e teológica.
Após o aparecimento do espírito de Humberto de Campos, Chico Xavier, já célebre, não apenas surpreende o país e o próprio meio espírita, mas começa a enfrentar problemas com a viúva de Humberto, resultando no famoso processo em que se pleiteava os direitos autorais pelas obras psicografadas, caso se confirmasse a autoria do famoso escritor maranhense. A defesa de Chico foi bancada pela Federação Espírita Brasileira (que resultou posteriormente no clássico espírita A psicografia perante os tribunais, do advogado Miguel Timponi). O juiz decidiu que os direitos autorais referiam-se à obra reconhecida em vida do autor, não havendo condição do tribunal se pronunciar sobre a existência ou não da mediunidade. No entanto, o nome Humberto de Campos é substituído pelo pseudônimo "irmão X".
Chico passa a trabalhar como funcionário público no Ministério da Agricultura, na função de auxiliar de serviço. Não há nenhum registro de falta ao trabalho em toda a sua carreira de funcionário público.
Maior clássico do espiritismo brasileiro, o romance Nosso lar, de 1943, é de longe o livro mais vendido e divulgado da extensa obra mediúnica de Chico Xavier. Trata-se do primeiro de uma extensa longa série de livros cuja autoria é atribuída ao mais científico e "sociológico" dos autores espirituais que lhe ditaram mensagens, o espírito André Luiz. A celebridade de Chico Xavier não cessa de crescer. Cada vez mais pessoas acorrem em busca de curas e mensagens ao médium da pequena Pedro Leopoldo, que se torna um centro informal de peregrinação.
Morre na miséria o seu antigo patrão, José Felizardo. Chico empenha-se em arranjar um enterro digno ao antigo amigo, pleiteando doações de casa em casa. Segundo Ubiratan Machado, "até mesmo um mendigo cego doou-lhe toda a féria do dia" (1996: 53). Em 1958 Chico enfrenta um novo escândalo, dessa vez por conta das denúncias do sobrinho, Amauri Pena, filho da irmã curada de obsessão. O sobrinho, ele mesmo médium psicógrafo, anuncia-se pela imprensa como falso médium, um pastichador muito capaz, acusação que estende ao tio. Chico defende-se em seu estilo habitual, extremamente suave, negando ter qualquer proximidade com o sobrinho. Já com antecedentes de alcoolismo e com sérios remorsos pelos danos causados à reputação do tio, Amauri é internado num sanatório psiquiátrico em São Paulo, onde vem a falecer.
Nessa época Chico conhece o jovem médico e médium Waldo Vieira, com quem psicografará várias obras em comum, até a ruptura de ambos, alguns anos depois. Muda-se para Uberaba em 1958, onde reside até hoje. Continua a psicografar inúmeras obras, passando a abordar os temas que marcam a década de 1960, como o sexo, as drogas, a questão da juventude, a tecnologia, as viagens espaciais, o homem artificial, etc. Uberaba vira centro de peregrinação informal de caravanas que chegam diariamente com a esperança de um contato com parentes falecidos através de Chico Xavier. Popularizam-se os livros de "mensagens": cartas ditadas a familiares por mortos comuns. Continuam as campanhas de distribuição de alimentos e roupas para os pobres da cidade. Chico visita a América do Norte e a Europa para tratamento de saúde e missão de divulgação do espiritismo.
Na década de 1970, Chico participa de programas de televisão, que têm uma enorme audiência. Além dos problemas de pulmões e da catarata, passa a sofrer de angina. Em 1981 é proposto ao Prêmio Nobel da Paz, que não ganha. Sua fama se amplia internacionalmente, tendo várias de suas obras vertidas em diversas línguas, assim como ganha adaptações para telenovelas. Ao final dos anos 90, Chico já conta com mais de 400 títulos de livros psicografados, estando ainda em atividade no momento em que escrevo essas linhas.
Nos anos 90 calcula-se em aproximadamente 50 milhões os livros espíritas circulando no Brasil, dos quais 15 milhões são atribuídos aos livros de Chico Xavier e 12 milhões às obras de Kardec (Santos, 1997: 89).

Entre duas religiões: espiritismo e catolicismo em Chico Xavier
O ponto mais importante na consideração do lugar de Chico Xavier na cultura e na religiosidade do Brasil do século XX reside na peculiar combinação que este realiza, através de sua biografia, entre o espiritismo kardecista com um catolicismo familiar e popular bastante tradicional. É o resultado desta síntese ¾ posteriormente articulada a uma perspectiva mito-histórica e corporativa de nacionalidade ¾ que definirá a face dominante do espiritismo kardecista no Brasil a partir da década de 1940.
Da morte da mãe até a morte da madrasta Cidália, dos cinco aos dezessete anos, a vida de Chico Xavier é marcada por intensos sofrimentos, provas e descobertas. Nessa etapa formativa as influências decisivas no menino Chico giram completamente em torno da figura materna ou de suas substitutas. A morte da mãe inicia a diáspora familiar, só terminada com o novo casamento do pai com Cidália. A ênfase na mãe ¾ assim como na prática familiar do espiritismo ¾ nunca deixará de povoar desde as manifestações públicas de Chico Xavier até os seus textos psicografados7. É justamente esse destaque atribuído à "mãe" como formadora moral, influência decisiva no âmbito familiar e intercessora privilegiada junto ao plano espiritual, que é afirmada nessa trajetória de juventude. Desde cedo inspirado pela devoção católica da bondosa mãe, esta continua a orientá-lo após a morte, como tutora espiritual e elo de ligação com a continuidade familiar.
Em oposição ao papel da mãe, não há destaque algum para o pai, João Cândido, na vida de Chico. Sempre em potencial tensão com o filho, o pai tem um papel distante, mostrado como um personagem fraco e dependente da ação alheia, incapaz de manter por si só a coesão familiar. Mero coadjuvante, ele entrega o pequeno Chico em tenra idade para a cruel madrinha. Mais tarde, pouco compreensivo com as faculdades mediúnicas do filho, considera a possibilidade de interná-lo num sanatório. Na fase adulta de Chico, João Cândido meramente se conforma com a celebridade do filho, não sem antes ter insistido para que o médium usasse os seus poderes para o sustento da casa. Depois da morte de Cidália, não é João Cândido, mas Chico que assume a criação de seus meio-irmãos menores. Com o desenrolar da narrativa, o papel do pai vai sendo obscurecido, não tendo influenciado a formação moral, religiosa ou outros aspectos da vida de Chico. Também não são registradas manifestações mediúnicas do espírito do pai após a sua morte, em 1960.
À piedade e bondade da mãe natural opõe-se a extrema crueldade da madrinha, que será a primeira a acusá-lo de ter o "diabo no corpo", ao modo de alguns de seus futuros oponentes. Rita de Cássia, que o cria após o falecimento de Maria João de Deus, não tem uma relação de parentesco "natural" com Chico: é uma mulher aparentemente sem uma família definida, sem portanto uma integração consistente numa estrutura moral que lhe pudesse atribuir um papel como mãe e esposa. Ou seja, do ponto de vista da ideologia moral, ela tem um statusaltamente ambíguo, como mulher sem laços e frouxamente relacionada com a família de Chico. "Madrinha", ou seja, definida através de uma relação de pseudoparentesco, ela forma uma pseudofamília com os enteados Chico e Moacir, revelando-se perigosa ao tornar-se "madrasta". A despeito da amizade prévia com Maria João de Deus, ela permanece como uma pessoa "de fora", uma estranha, alheia aos imperativos códigos de sangue. Como madrasta substituta, sua influência é forte, mas negativa. No entanto, ela representará o primeiro contato de Chico com a descoberta de sua missão junto ao mundo externo à família, ligada ao exercício de seus poderes mediúnicos.
Nesse sentido, as histórias de infância de Chico Xavier carregam esse caráter iniciático que partilha com xamãs e profetas: a diferença altamente individualizadora e o "chamado", assim como os intensos sofrimentos e provas sacrificiais, reveladores de uma santidade, que se revelará como "missão programada no Plano Espiritual".
Iniciática e probatória, é na relação com a madrinha que Chico aprende a suportar sofrimentos e humilhações com resignação, relacionando-se com o mundo exterior à família como numa espécie de escola. Na versão de Ramiro Gama, a madrinha é descrita como "obsidiada", ou seja, Gama enquadra os malefícios sofridos pelo menino na típica explicação espírita, abrindo uma lacuna para a operação de catálises narrativas8, mas é preciso salientar que Chico jamais falou mal de Rita, como de resto jamais revidou qualquer ofensa ou golpe sofrido pelos inimigos ao longo da vida. A simpatia escolhida ¾ "uma criança lamber a ferida em jejum durante três sextas-feiras" ¾coroa a narrativa de sofrimentos morais e corporais do garoto com uma hipérbole de humilhação e de "ignorância"¾ elementos fundamentais em sua história de santidade. Os claros ingredientes de injustiça dessa história são atenuados pelas intervenções do espírito de sua mãe, que sempre o aconselha a nunca desobedecer às figuras de autoridade e nem a tomar a justiça em suas próprias mãos. Ou seja, nos ensinamentos de Maria João de Deus há o gérmen da concepção de cidadão que o acompanhará pelo resto da vida: o "caxias" obediente e cumpridor das regras, num sistema cosmológico e ético no qual a correção da injustiça sempre conta com alguma participação do Plano Espiritual. Cedo ele aprende que, se os postos de autoridade são eventualmente ocupados por indivíduos indignos, isto não configura um motivo para revolta ou vingança, nem para desacreditar na validade da Ordem como um todo. Na versão de Ramiro Gama, por exemplo, ocorrem os seguintes diálogos do pequeno Chico com o espírito de sua mãe:
¾ Estou apanhando muito, mamãe!
¾ Tenha paciência meu filho. Você precisa crescer mais forte para o trabalho. E quem não sofre não aprende a lutar. (Gama, 1986: 38)
Numa tarde muito fria, quando entrou em colóquio com Dona Maria João de Deus, Chico implorou:
¾ Mamãe, se a senhora vem nos ver, por que não me retira daqui?
O espírito consolou-o e explicou:
¾ Não perca a paciência. Pedi a Jesus para enviar um anjo bom que tome conte de vocês todos. (idem: 39)
A intervenção do espírito da mãe, no episódio da ferida de Moacir, já revela a tensão do espiritismo com outros sistemas de cura (neste caso a benzeção, sobre a qual o espírito afirma que "não é remédio") em benefício da presença mediadora de agentes espirituais no desenlace do drama, estes sim os protagonistas eficazes. O pedido a Jesus pelo "anjo bom" é também exemplar: trata-se da nova madrasta, Cidália, a legítima sucessora da mãe na tarefa de recompor a família. Não há meio termo nas relações de Chico com suas figuras maternas: elas são ou bondosas ou perversas, mas sempre mediadoras, ou seja, intercessoras junto ao domínio do sagrado. Assim, Maria João de Deus volta após a morte como guardiã espiritual e intercessora do filho junto aos "benfeitores espirituais" e "espíritos de luz". Rita de Cássia é "obsidiada", ou seja, mediadora das forças do mal. E, finalmente, Cidália é o "anjo bom que virá para salvá-lo", todas as três em posição de mediadoras em relação ao jovem Chico. Esta matrifocalidade na história familiar de Chico desempenhará um papel estratégico na aproximação com o catolicismo popular, conciliando o espiritismo com a dinâmica religiosa de uma importante vertente da sociedade brasileira. O espiritismo de Chico Xavier absorverá do catolicismo popular o circuito da intercessão e da graça (típico do culto aos santos) e a devoção familiar centrada na figura materna.
Estamos ainda num tempo em que impera um modelo hierárquico e complementar de distribuição de papéis na família, no qual as disposições morais e espirituais são ligadas ao lugar estrutural da categoria "mãe", penhor da honra e da espiritualidade da família, semelhante a outras culturas de influência mediterrânea9.
Neste modelo, o papel mediador é prioritariamente maternal e feminino e o espiritismo de Chico reelaborará mitica e teologicamente essa ênfase. Inúmeras são as referências, nas obras de Chico Xavier, aos "benfeitores espirituais" que, "a pedido de mães devotas", "intercedem a favor de um irmão", que conquistam graças, atualizando um sistema de relações pessoais em que opera uma lógica personalizada, relacional e mediadora, da dádiva e da compensação, bem diferente da inexorabilidade presente em formulações anteriores sobre a categoriacarma:
Elias Barbosa ia mais além:
¾ Se você quiser evitar o suicídio de seu filho, vá para a cadeia e ajude os presos. Escreva cartas para eles, dê cobertores aos detentos, vire pai e mãe deles.
Muitos não entendiam nada. De acordo com a lógica do guru Chico Xavier, os presos quase sempre eram acompanhados pelos espíritos das mães mortas. E elas retribuíam toda a ajuda dada a seus filhos pedindo aos benfeitores espirituais atenção a quem os auxiliasse. No dia das mães, a cada ano, Chico reunia um grupo de amigos e visitava os presos. (Souto Maior, 1995: 151)
Respondendo a uma questão de um entrevistador a respeito do carma, em 1991, Chico é mais explícito ainda na reelaboração desta categoria à luz de uma cultura religiosa povoada de mediações:
P - Deve-se aceitar a lei do carma passivamente ou temos condições de modificá-la, talvez, para uma condição melhor?
R - Aquilo que ficou estabelecido como sendo nossa dívida é uma determinação que devemos pagar. Se comprei e assumi a dívida, devo pagar. É o que consideramos destinação, é o carma. Mas isso não impede a lei da criatividade com a qual nós podemos atuar todos os dias para o bem, anulando o carma, chamado de sofrimento. Vamos supor que uma criatura está doente e precisa de uma intervenção cirúrgica. É o caso de perguntarmos: ela deve ou não se submeter à intervenção cirúrgica, que tem todas as possibilidades de êxito? Ela deve sim, deve preservar o seu próprio corpo, é um dever procurar a medicina e se valer do socorro médico para reabilitação do seu próprio organismo. Então, aí está uma resposta a esta questão. A misericórdia de Deus sempre nos proporciona recursos para pagar ou reformar os nossos títulos de débito, assim como uma organização bancária permite que determinadas promissórias sejam pagas com grande adiantamento, conforme o merecimento do devedor. Assim como temos grande número de amigos avalistas a nos tutelar nos bancos, temos também os espíritos extraordinários que são os santos, os anjos, os nossos amigos espirituais que pedem por nós, que auxiliam, que nos dão mais oportunidades para que a gente tenha mais tempo. Por isso que a pessoa deve cuidar bem de seu corpo, porque ele é a enxada com qual a criatura está semeando e lavrando o terreno do tempo e das boas ações. De modo que existe o carma, mas existe também o pensamento livre, porque nós somos livres por dentro da cabeça. (entrevista de Chico Xavier ao jornal O Espírita Mineiro, apud Barbosa, 1992: 71)
Seria difícil ser mais claro com respeito à presença da concepção católica de intercessão e de graça. É curiosa a intervenção da figura eminentemente hierárquica do "terceiro", do avalista, do amigo, do intercessor espiritual a relativizar e mudar o perfil da dívida, fazendo-a transitar da lógica impessoal, segmentar e absoluta da dívida cármica para a lógica personalizada, relacional e mediadora da dádiva. Assim, a admissão de entidades intercessoras "a pedir por nós" evidencia o sincretismo de suas posições com a cultura católico-brasileira, com seus anjos, santos e benfeitores, estranhos a uma concepção mais linear, impessoal e individualista de carma, presente no espiritismo de Allan Kardec.
É justamente esta relação conciliadora com um catolicismo que lhe era freqüentemente hostil da parte dos padres e intelectuais católicos, mas tido como autenticamente devoto, familiar e benéfico, quando encarnado em pessoas "simples", "humildes" e "mães devotas", que constitui o tema central na fase infantil e formativa das biografias de Chico Xavier. Em Chico, as pontes do espiritismo brasileiro com o universo popular católico, estremecidas em décadas de atritos com as autoridades leigas e eclesiais10, começam a ser lentamente recompostas na direção de uma suave continuidade entre universos religiosos até então bem distintos. Com o médium de Pedro Leopoldo, o espiritismo sofre uma reordenação sem precedentes na direção de enfatizar a devoção doméstica através do Culto do Evangelho no lar11, conquistando um público habituado a uma vivência mais popular e oral do catolicismo, que cultuava santos locais, que acreditava na força das rezas e das simpatias, e cujas práticas muitas vezes eram apanágio das mães de família.
O ciclo formativo de infância e juventude de Chico Xavier é pontuado por uma série de provas, ligadas ao papel desempenhado pelas diferentes figuras maternas, pela relação com a religiosidade católica e pela descoberta da mediunidade. A redação escolar com que ganhou o prêmio estadual, assim como os conselhos de obediência e de humildade dados pelo espírito da mãe prenunciavam o tipo de espírita modelar que viria a simbolizar: de um lado, Chico é herdeiro dos valores ligados à família e ao tradicional ethos católico e, de outro, propõe uma espécie de religião cívica, na qual a celebração de uma ordem colocava-se acima de considerações críticas e individualistas. Para o espiritismo cristão de Chico Xavier, ser espírita é ser reverente a Deus, ser letrado, piedoso, obediente e caridoso, assim como um bom cidadão, um trabalhador disciplinado e um membro amoroso de um núcleo familiar, combinando um ideal religioso com um ideal cívico.
A morte de Cidália e a obsessão da irmã, que o leva a descobrir o espiritismo, marcam o fim do ciclo de infância e juventude do jovem Chico. Ele deixa de ser tutelado pelas mães (Maria João de Deus só reaparece em 1931, uma única vez), passando ele mesmo a funcionar como tutor ¾ mais maternal do que paternal, bem entendido ¾ de suas jovens meias irmãs.
O problema com a irmã obsidiada Maria Xavier ¾ apenas uma das diversas crises na vida de Chico ¾ tem um nexo com a crise do sobrinho, Amaury. Coerente com o sistema de representações sobre o parentesco, que venho discutindo, Amaury "herda" da mãe a predisposição a perturbações pessoais e espirituais (ou seja, é portador de uma mediunidade distorcida), mas não de seu pai, que veio a público lamentar suas atitudes. Novamente, é a admirável verve mitologizante de Marcel Souto Maior que capta a reação espírita diante do caso:
Amauri morreu e deixou como herança um mistério para os espíritas. Por que ele tinha atacado o tio? A versão mais aceita no meio é a de que ele assumiu a autoria dos poemas e levantou suspeitas contra Chico para impressionar e agradar uma moça católica por quem estava apaixonado. Outra versão, mais apimentada, coloca dinheiro na roda: ele teria sido subornado por um padre para desmoralizar o espírita de Pedro Leopoldo. Amauri nunca mandou explicações do além. (1995: 125)
Em verdade, os boatos são variantes da mesma narrativa: falam de um espírita de baixo grau de evolução, dominado por paixões ligadas à matéria ¾ como a que redunda no vício do álcool ¾, sem convicção nem firmeza de caráter, assediado por um catolicismo hostil, que busca manipulá-lo: 1) pela sensualidade ¾ uma forma de apego corrupto à matéria, por meio da paixão por uma "moça católica", e 2) pelo suborno, oferecido pelo padre, típico personagem ligado ao poder nas narrativas espíritas, ardiloso e maligno. O tema de um catolicismo inimigo do espiritismo ajuda a formar a base de uma identidade contrastiva do kardecismo, como permanente vítima de incompreensões e perseguições. Ele afirma-se principalmente em oposição às autoridades eclesiásticas católicas que, nestas narrativas, buscam ora minar a sua legitimidade ora corromper os espíritas através de tentações sensuais e materiais12. Ainda que seja onipresente como possibilidade, o Mal reside aqui na relação promíscua de Amaury com o mundo material, cujo verdadeiro agente maligno é representado pela Igreja. Nesta narrativa, cujo núcleo dramático é a traição do tio pelo sobrinho, há uma transmissão feminina de qualidades mediúnicas, distorcida pela exposição ao Mal, primeiro no caso da irmã obsidiada, por intermédio da qual Chico encontra a doutrina espírita e, depois, por conta do escândalo envolvendo o sobrinho.
A ligação com o catolicismo encontra um máximo de ambivalência na relação com a Igreja. Padre Scarzelli, representante de um catolicismo condescendente e bem-intencionado, mas descrédulo dos fenômenos espíritas, ajuda a salvar Chico da psiquiatria, ou seja, foi um aliado em alguns contextos, em oposição à incompreensão médica. Mas prescreveu a restrição das leituras, atitude inspirada por um ânimo completamente oposto ao do espiritismo, embora de acordo com os preceitos católicos tradicionais13. A própria carolice de Chico na juventude expressa essa relação de diferenciação e conciliação em relação à Igreja Católica, que lhe acompanhará a vida inteira, causadora de animosidades e críticas entre alguns companheiros espíritas.
Assim, a desobsessão da irmã sela a adesão definitiva de Chico ao espiritismo sem uma ruptura definitiva com o catolicismo. Do contrário, no relato de Souto Maior sobre o seu último encontro com o padre Scarzilli, quando o devoto Chico lhe conta suas práticas espíritas e pede a sua benção, há um forte sabor de continuidade entre os dois sistemas religiosos:
¾ Seja feliz, meu filho. Rogarei à Mãe Santíssima para que te abençoe e proteja. (1995: 21)
Estamos aqui diante do impasse espírita perante a "cultura católica brasileira", de tão profundas raízes no Brasil: um catolicismo eivado de uma fé cristã cuja presumida "sinceridade de propósitos" dos fiéis é interpretada como mais profunda do que as intenções de muitos clérigos e que, por isso, não podia ser simplesmente afrontada na consolidação do espiritismo. Por meio da vida e obra de Chico Xavier, o espiritismo abre um leque de trocas com um catolicismo familiar, em que se destaca o papel moral, espiritual, educacional e mediador das mães. Amplia-se também a interface do espiritismo com o ethos católico das camadas populares, enfatizando a vivência ritual da religião no âmbito familiar, permeada de crenças na atuação de entidades invisíveis, pelo apadrinhamento espiritual e pela concessão de favores e de graças ¾ visão de mundo de ampla disseminação no Brasil.
Nada mais representativo dessa disposição sincrética do que a construção da identidade de seu Emmanuel. A essência sincrônica desse personagem, como espírito de luz, está ligada à absorção metonímica de características de vidas passadas: a nobreza (como o senador romano Publio Lentulus), os valores cristãos e o martírio (na encarnação seguinte como escravo romano) e, finalmente, o caráter apostólico e fundador da nacionalidade do padre jesuíta Manoel da Nóbrega, que combina herança católica e portuguesa com a brasilidade, em que a novidade do espiritismo aparece como a conseqüência de uma "missão" estabelecida desde tempos imemoriais.
Os "jesuítas" são os personagens que simbolizam essa síntese entre cristianismo, educação, disciplina e nacionalidade, atualizada na obra de Chico Xavier. São por assim dizer "bons para pensar" essa síntese. Ligada à evangelização do Brasil, a Companhia de Jesus é simultaneamente missionária e escolar, realizadora da bandeira do Cristianismo em terras ultramarinas e, ao mesmo tempo, depositária e transmissora do saber da Grande Tradição Ocidental. E isso não é de pouca monta para uma alternativa religiosa que se caracteriza justamente pela valorização do saber erudito e letrado.
Outra síntese operada pela identidade "jesuítica" de Emmanuel (Manoel da Nóbrega, evangelizador e fundador de cidades, como São Paulo) cruza a religião com os valores militares, a disciplina, a obediência e o mérito, pois a Companhia de Jesus sempre foi conhecida como uma espécie de ordem religiosa militarizada. Como numa hierarquia militar, Emmanuel comanda uma falange de espíritos de luz, assim como está subordinado a Ismael (patrono espiritual do Brasil) e este, por sua vez, subordinado a Cristo, governador espiritual da Terra na versão veiculada em Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho.
Curiosamente, a resignação e alegria de Chico Xavier são freqüentemente comparadas a São Francisco de Assis. Tudo se passa como se a boa ordem no mundo, para o espiritismo de Chico Xavier, consistisse no jesuíta comandando com mão severa e senso militar de organização e o franciscano obedecendo com satisfação, humildade e bonomia.
É esta elaboração sincrética, que relaciona Chico Xavier (e seu mentor Emmanuel) tanto com o catolicismo popular quanto com tendências corporativas do catolicismo institucional, que será a principal responsável pela popularização do espiritismo no Brasil a partir de 1940, época em que passa a sofrer a concorrência de outras religiões mediúnicas, como a umbanda14. A antiga apresentação do kardecismo no Brasil, antes de Chico Xavier, combinava uma ênfase no teor moral da doutrina com a popularidade clientelística do receitismo mediúnico. Ou seja, uma elite letrada atendia aos pobres nos centros espíritas. Presente no modelo representado por Kardec, a orientação racionalista da doutrina espírita é paulatinamente substituída no Brasil, primeiro pelas diretrizes da atuação de Bezerra de Menezes à frente da Federação Espírita Brasileira e, depois, pelo carisma atribuído à mediação e à dupla mediadora médium/mentor no modelo religioso de Chico Xavier. Como acentuo no quadro a seguir, o destaque dado à noção de espíritos missionários e na mediunidade com Jesus , mais a introdução do sistema da dádiva, coroa esse esforço de renovação no espiritismo de Chico Xavier.



O Livro dos Espíritos

Parte Primeira – As Causas Primárias

Capítulo 1 – Deus

Deus e o infinito – Provas da existência de Deus – Atributos da Divindade – Panteísmo

Deus e o infinito

1 O que é Deus?
– Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.1
2 O que devemos entender por infinito?
– O que não tem começo nem fim; o desconhecido; tudo o que é desconhecido é infinito.
3 Poderíamos dizer que Deus é infinito?
– Definição incompleta. Pobreza da linguagem dos homens, que é insuficiente para definir as coisas que estão acima de sua inteligência.
☼ Deus é infinito em suas perfeições, mas o infinito é uma abstração. Dizer que Deus é infinito é tomar o atributo2 de uma coisa por ela própria, é definir uma coisa que não é conhecida por uma outra igualmente desconhecida.

Provas da existência de Deus

4 Onde podemos encontrar a prova da existência de Deus?
– Num axioma que aplicais às vossas ciências: não há efeito sem causa. Procurai a causa de tudo o que não é obra do homem, e a vossa razão vos responderá.
☼ Para acreditar em Deus, basta ao homem lançar os olhos sobre as obras da criação. O universo existe, portanto ele tem uma causa. Duvidar da existência de Deus seria negar que todo efeito tem uma causa e admitir que o nada pôde fazer alguma coisa.
5 Que conclusão podemos tirar do sentimento intuitivo que todos os homens trazem em si mesmos da existência de Deus?
– A de que Deus existe; de onde lhes viria esse sentimento se repousasse sobre o nada? É ainda uma conseqüência do princípio de que não há efeito sem causa.
6 O sentimento íntimo que temos em nós da existência de Deus não seria o efeito da educação e das idéias adquiridas?
– Se fosse assim, por que vossos selvagens teriam também esse sentimento?
☼ Se o sentimento da existência de um ser supremo fosse o produto de um ensinamento, não seria universal. Somente existiria naqueles que tivessem recebido esse ensinamento, como acontece com os conhecimentos científicos.
7 Poderemos encontrar a causa primária da formação das coisas nas propriedades íntimas da matéria?
– Mas, então, qual teria sido a causa dessas propriedades? Sempre é preciso uma causa primária.
☼ Atribuir a formação primária das coisas às propriedades íntimas da matéria seria tomar o efeito pela causa, porque essas propriedades são elas mesmas um efeito que deve ter uma causa.
8 O que pensar da opinião que atribui a formação primária a uma combinação acidental e imprevista da matéria, ou seja, ao acaso?
– Outro absurdo! Que homem de bom senso pode conceber o acaso como um ser inteligente? E, além de tudo, o que é o acaso? Nada.
☼ A harmonia que regula as atividades do universo revela combinações e objetivos determinados e, por isso mesmo, um poder inteligente. Atribuir a formação primária ao acaso seria um contra-senso, porque o acaso é cego e não pode produzir os efeitos que a inteligência produz. Um acaso inteligente não seria mais um acaso.
9 Onde é que se vê na causa primária a manifestação de uma inteligência suprema e superior a todas as inteligências?
– Tendes um provérbio que diz: “Pela obra reconhece-se o autor.” Pois bem: olhai a obra e procurai o autor. É o orgulho que causa a incredulidade. O homem orgulhoso não admite nada acima dele; é por isso que se julga um espírito forte. Pobre ser, que um sopro de Deus pode abater!
☼ Julga-se o poder de uma inteligência por suas obras. Como nenhum ser humano pode criar o que a natureza produz, a causa primária é, portanto, uma inteligência superior à humanidade.
Quaisquer que sejam os prodígios realizados pela inteligência humana, essa inteligência tem ela mesma uma causa e, quanto mais grandioso foro que ela realize, maior deve ser a causa primária. É essa inteligência superior que é a causa primária de todas as coisas, qualquer que seja o nome que o homem lhe queira dar.

Atributos da Divindade

10 O homem pode compreender a natureza íntima de Deus?
– Não, falta-lhe, para isso, um sentido.
11 Um dia será permitido ao homem compreender o mistério da Divindade?
– Quando seu Espírito não estiver mais obscurecido pela matéria e, pela sua perfeição, estiver mais próximo de Deus, então o verá e o compreenderá.
☼ A inferioridade das faculdades do homem não lhe permite compreender a natureza íntima de Deus. Na infância da humanidade, o homem O confunde muitas vezes com a criatura, da qual lhe atribui as imperfeições; mas, à medida que o senso moral nele se desenvolve, seu pensamento compreende melhor o fundo das coisas e ele faz uma idéia de Deus mais justa e mais conforme ao seu entendimento, embora sempre incompleta.
12 Se não podemos compreender a natureza íntima de Deus, podemos ter idéia de algumas de suas perfeições?
– Sim, de algumas. O homem as compreende melhor à medida que se eleva acima da matéria. Ele as pressente pelo pensamento.
13 Quando dizemos que Deus é eterno, infinito, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom, não temos uma idéia completa de seus atributos?
– Do vosso ponto de vista, sim, porque acreditais abranger tudo. Mas ficai sabendo bem que há coisas acima da inteligência do homem mais inteligente e que a vossa linguagem, limitada às vossas idéias e sensações, não tem condições de explicar. A razão vos diz, de fato, que Deus deve ter essas perfeições em grau supremo, porque se tivesse uma só de menos, ou que não fosse de um grau infinito, não seria superior a tudo e, por conseguinte, não seria Deus. Por estar acima de todas as coisas, Ele não pode estar sujeito a qualquer instabilidade e não pode ter nenhuma das imperfeições que a imaginação possa conceber.
☼ Deus é eterno. Se Ele tivesse tido um começo teria saído do nada, ou teria sido criado por um ser anterior. É assim que, de degrau em degrau, remontamos ao infinito e à eternidade.
É imutável; se estivesse sujeito a mudanças, as leis que regem o universo não teriam nenhuma estabilidade.
É imaterial, ou seja, sua natureza difere de tudo o que chamamos matéria; de outro modo não seria imutável, porque estaria sujeito às transformações da matéria.
É único; se houvesse vários deuses, não haveria unidade de desígnios, nem unidade de poder na ordenação do universo.
É todo-poderoso, porque é único. Se não tivesse o soberano poder, haveria alguma coisa mais ou tão poderosa quanto Ele; não teria feito todas as coisas e as que não tivesse feito seriam obras de um outro Deus.
É soberanamente justo e bom. A sabedoria providencial das Leis Divinas se revela nas menores como nas maiores coisas, e essa sabedoria não permite duvidar de sua justiça nem de sua bondade.

Panteísmo

14 Deus é um ser distinto, ou seria, segundo a opinião de alguns, resultante de todas as forças e de todas as inteligências do universo reunidas?
– Se fosse assim, Deus não existiria, porque seria o efeito e não a causa; Ele não pode ser ao mesmo tempo uma e outra coisa.
Deus existe, não podeis duvidar disso, é o essencial. Crede em mim, não deveis ir além, não vos percais num labirinto de onde não podereis sair, isso não vos tornaria melhores, mas talvez um pouco mais orgulhosos, porque acreditaríeis saber e na realidade não saberíeis nada. Deixai de lado todos esses sistemas; tendes muitas coisas que vos tocam mais diretamente, a começar por vós mesmos. Estudai vossas próprias imperfeições a fim de vos desembaraçar delas, isso vos será mais útil do que querer penetrar no que é impenetrável.
15 O que pensar da opinião de que todos os corpos da natureza, todos os seres, todos os globos do universo, seriam parte da Divindade e constituiriam, pelo seu conjunto, a própria Divindade, ou seja, o que pensar da doutrina panteísta?
– O homem, não podendo se fazer Deus, quer pelo menos ser uma parte d’Ele.
16 Aqueles que acreditam nessa doutrina pretendem nela encontrar a demonstração de alguns atributos de Deus. Sendo os mundos infinitos, Deus é, por isso mesmo, infinito; não havendo o vazio ou o nada em nenhuma parte, Deus está, portanto, em toda parte; Deus, estando por toda parte, uma vez que tudo é parte integrante de Deus, dá a todos os fenômenos da natureza uma razão de ser inteligente. O que se pode opor a esse raciocínio?
– A razão. Refleti maduramente e não vos será difícil reconhecer o absurdo disso.
☼ Esta doutrina faz de Deus um ser material que, embora dotado de uma inteligência suprema, seria em tamanho grande o que nós somos em tamanho pequeno. Uma vez que a matéria se transforma sem parar, se assim for, Deus não teria nenhuma estabilidade, estaria sujeito a todas as mudanças e variações, a todas as necessidades da humanidade, e lhe faltaria um dos atributos essenciais da Divindade: a imutabilidade. Não se pode imaginar que são as mesmas as propriedades da matéria e a essência de Deus, sem O rebaixar na nossa concepção. Todas as sutilezas do sofisma3 não conseguirão resolver o problema na sua natureza íntima. Não sabemos tudo o que Deus é, mas sabemos o que não pode deixar de ser, e a teoria do panteísmo está em contradição com suas propriedades mais essenciais; ela confunde o criador com a criatura, exatamente como se afirmasse categoricamente que uma máquina engenhosa fosse parte integrante do mecânico que a concebeu.
A inteligência de Deus se revela em suas obras como a de um pintor em seu quadro, mas as obras de Deus não são o próprio Deus, assim como o quadro não é o pintor que o concebeu e executou.

  1. O texto colocado após o travessão na seqüência das perguntas é a resposta que os Espíritos deram. O sinal indica que é um comentário de Kardec às respostas dos Espíritos (N. E.).
  2. Atributo: qualidade de um ser, aquilo que lhe é próprio. Neste caso, ser infinito é uma das qualidades de Deus entre todas as demais, mas não é só isso, ou não é o bastante para O concebermos (N. E.).
  3. Sofisma: argumento falso, enganoso, feito de propósito para induzir ao erro (N. E.).

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Ghost Lab-107-O Sombra

Ghost Lab-107-O Sombra

o livro dos mediuns 2

CAPÍTULO II

Do maravilhoso e do sobrenatural


7. Se a crença nos Espíritos e nas suas manifestações representasse uma concepção singular, fosse produto de um sistema, poderia, com visos de razão, merecer a suspeita de ilusória. Digam-nos, porém, por que com ela deparamos tão vivaz entre todos os povos, antigos e modernos, e nos livros santos de todas as religiões conhecidas? E, respondem os críticos, porque, desde todos os tempos, o homem teve o gosto do maravilhoso.
  • Mas, que entendeis por maravilhoso?
  • O que é sobrenatural ?
  • Que entendeis por sobrenatural?
  • O que é contrário às leis da Natureza.
  • Conheceis, porventura, tão bem essas leis, que possais marcar limite ao poder de Deus?
Pois bem! Provai então que a existência dos Espíritos e suas manifestações são contrárias às leis da Natureza; que não é, nem pode ser uma destas leis. Acompanhai a Doutrina Espírita e vede se todos os elos, ligados uniformemente à cadeia, não apresentam todos os caracteres de uma lei admirável, que resolve tudo o que as filosofias até agora não puderam resolver.
O pensamento é um dos atributos do Espírito; a possibilidade, que eles têm, de atuar sobre a matéria, de nos impressionar os sentidos e, por conseguinte, de nos transmitir seus pensamentos, resulta, se assim nos podemos exprimir, da constituição fisiológica que lhes é própria. Logo, nada há de sobrenatural neste fato, nem de maravilhoso. Tornar um homem a viver depois de morto e bem morto, reunirem-se seus membros dispersos para lhe formarem de novo o corpo, sim, seria maravilhoso, sobrenatural, fantástico. Haveria aí uma verdadeira derrogação da lei, o que somente por um milagre poderia Deus praticar. Coisa alguma, porém, de semelhante há na Doutrina Espírita.
8. Entretanto, objetarão, admitis que um Espírito pode suspender uma mesa e mantê-la no espaço sem ponto de apoio. Não constitui isto um a derrogação da lei de gravidade? - Constitui, mas da lei conhecida; porém, já a Natureza disse a sua última palavra? Antes que se houvesse experimentado a força ascensional de certos gases, quem diria que uma máquina pesada, carregando muitos homens, fosse capaz de triunfar da força de atração? Aos olhos do vulgo, tal coisa não pareceria maravilhosa, diabólica? Por louco houvera passado aquele que, há um século, se tivesse proposto a transmitir um telegrama a 500 léguas de distância e a receber a resposta, alguns minutos depois. Se o fizesse, toda gente creria ter ele o diabo às suas ordens, pois que, àquela época, só ao diabo era possível andar tão depressa. Porque, então, um fluido desconhecido não poderia, em dadas circunstâncias, ter a propriedade de contrabalançar o efeito da gravidade, como o hidrogênio contrabalança o peso do balão? Notemos, de passagem, que não fazemos uma assimilação, mas apenas urna comparação, e unicamente para mostrar, por analogia, que o fato não é fisicamente impossível.
Ora, foi exatamente por quererem, ao observar estas espécies de fenômenos, proceder por assimilação que os sábios se transviaram.
Em suma, o fato aí está. Não há, nem haverá negação que possa fazer não seja ele real, porquanto negar não é provar. Para nós, não há coisa alguma sobrenatural. É tudo o que, por agora, podemos dizer.
9. Se o fato ficar comprovado, dirão, aceitá-lo-emos; aceitaríamos mesmo a causa a que o atribuís, a de um fluido desconhecido. Mas, quem nos prova a intervenção dos Espíritos? Aí é que está o maravilhoso, o sobrenatural.
Far-se-ia mister aqui uma demonstração completa, que, no entanto, estaria deslocada e, ao demais, constituiria uma repetição, visto que ressalta de todas as outras partes do ensino. Todavia, resumindo-a nalgumas palavras, diremos que, em teoria, ela se funda neste princípio: todo efeito inteligente há de ter uma causa inteligente e, do ponto de vista prático, na observação de que, tendo os fenômenos ditos espíritas dado provas de inteligência, fora da matéria havia de estar a causa que os produzia e de que, não sendo essa inteligência a dos assistentes - o que a experiência atesta - havia de lhes ser exterior. Pois que não se via o ser que atuava, necessariamente era um ser invisível.
Assim foi que, de observação em observação, se chegou ao reconhecimento de que esse ser invisível, a que deram o nome de Espírito, não é senão a alma dos que viveram corporalmente, aos quais a morte arrebatou o grosseiro invólucro visível, deixando-lhes apenas um envoltório etéreo, invisível no seu estado normal. Eis, pois, o maravilhoso e o sobrenatural reduzidos à sua mais simples expressão.
Uma vez comprovada a existência de seres invisíveis, a ação deles sobre a matéria resulta da natureza do envoltório rio fluídico que os reveste. É inteligente essa ação, porque, ao morrerem, eles perderam tão-somente o corpo, conservando a inteligência que lhes constitui a essência mesma. Aí está a chave de todos esses fenômenos tidos erradamente por sobrenaturais. A existência dos Espíritos não é, portanto, um sistema preconcebido, ou uma hipótese imaginada para explicar os fatos: é o resultado de observações e conseqüência natural da existência da alma. Negar essa causa é negar a alma e seus atributos. Dignem-se de apresentá-la os que pensem em poder dar desses efeitos inteligentes uma explicação mais racional e, sobretudo, de apontar a causa de todos os fatos, e então será possível discutir-se o mérito de cada uma.
10. Para os que consideram a matéria a única potência da Natureza, tudo o que não pode ser explicado pelas leis da matéria é maravilhoso, ou sobrenatural, e, para eles, maravilhoso é sinônimo de superstição. Se assim fosse, a religião, que se baseia na existência de um princípio imaterial, seria um tecido de superstições. Não ousam dizê-lo em voz alta, mas dizem-no baixinho e julgam salvar as aparências concedendo que uma religião é necessária ao povo e às crianças, para que se tornem ajuizados. Ora, uma de duas, ou o princípio religioso é verdadeiro, ou falso. Se é verdadeiro, ele o é para toda gente, se falso, não tem maior valor para os ignorantes do que para os instruídos.
11. Os que atacam o Espiritismo, em nome do maravilhoso, se apóiam geralmente no princípio materialista, porquanto, negando qualquer efeito extramaterial, negam, ipso facto, a existência da alma. Sondai-lhes, porém, o fundo das consciências, perscrutai bem o sentido de suas palavras e descobrireis quase sempre esse princípio, se não categoricamente formulado, germinando por baixo da capa com que o cobrem, a de uma pretensa filosofia racional. Lançando à conta do maravilhoso tudo o que decorre da existência da alma, são, pois, conseqüentes consigo mesmos: não admitindo a causa, não podem admitir os efeitos. Daí, entre eles, uma opinião preconcebida, que os torna impróprios para julgar lisamente do Espiritismo, visto que o princípio donde partem é o da negação de tudo o que não seja material.
Quanto a nós, dar-se-á aceitemos todos os fatos qualificados de maravilhosos, pela simples razão de admitirmos os efeitos que são a conseqüência da existência da alma? Dar-se-á sejamos campeões de todos os sonhadores, adeptos de todas as utopias, de todas as excentricidades sistemáticas? Quem o supuser, demonstrará bem minguado conhecimento do Espiritismo. Mas, os nossos adversários não atentam nisto muito de perto. O de que menos cuidam é da necessidade de conhecerem aquilo de que falam.
Segundo eles, o maravilhoso é absurdo; ora, o Espiritismo se apóia em fatos maravilhosos, logo o Espiritismo é absurdo. E consideram sem apelação esta sentença. Acham que opõem um argumento irretorquível quando, depois de terem procedido a eruditas pesquisas acerca dos convulsionários de Saint-Médard, dos fanáticos de Cevenas, ou das religiosas de Loudun, chegaram à descoberta de patentes embustes, que ninguém contesta. Semelhantes histórias, porém, serão o evangelho do Espiritismo? Terão seus adeptos negado que o charlatanismo há explorado, em proveito próprio, alguns fatos? que outros sejam frutos da imaginação? que muitos tenham sido exagerados pelo fanatismo? Tão solidário é ele com as extravagâncias que se cometam em seu nome, quanto a verdadeira ciência com os abusos da ignorância, ou a verdadeira religião com os excessos do sectarismo. Muitos críticos se limitam a julgar do Espiritismo pelos contos de fadas e pelas lendas populares que lhe são as facções. O mesmo fora julgar da História pelos romances históricos, ou pelas tragédias.
12. Em lógica elementar, para se discutir uma coisa, preciso se faz conhecê-la, porquanto a opinião de um crítico só tem valor, quando ele fala com perfeito conhecimento de causa. Então, somente, sua opinião, embora errônea, poderá ser tomada em consideração Que peso, porém, terá quando ele trata do que não conhece? A legitima crítica deve demonstrar, não só erudição, mas também profundo conhecimento do objeto que versa, juízo reto e imparcialidade a toda prova, sem o que, qualquer menestrel poderá arrogar-se o direito de julgar Rossini e um pinta-monos o de censurar Rafael.
13. Assim, o Espiritismo não aceita todos os fatos considerados maravilhosos, ou sobrenaturais. Longe disso, demonstra a impossibilidade de grande número deles e o ridículo de certas crenças, que constituem a superstição propriamente dita. É exato que, no que ele admite, há coisas que, para os incrédulos, São puramente do domínio do maravilhoso, ou por outra, da superstição. Seja. Mas, ao menos, discuti apenas esses pontos, porquanto, com relação aos demais, nada há que dizer e pregais em vão. Atendo-vos ao que ele próprio refuta, provais ignorar o assunto e os vossos argumentos erram o alvo.
Porém, até onde vai a crença do Espiritismo? perguntarão. Lede, observai e sabê-lo-eis. Só com o tempo e o estudo se adquire o conhecimento de qualquer ciência. Ora, o Espiritismo, que entende com as mais graves questões de filosofia, com todos os ramos da ordem social, que abrange tanto o homem físico quanto o homem moral, é, em si mesmo, uma ciência, uma filosofia, que já não podem ser aprendidas em algumas horas, como nenhuma outra ciência.
Tanta puerilidade haveria em se querer ver todo o Espiritismo numa mesa girante, como toda a física nalguns brinquedos de criança. A quem não se limite a ficar na superfície, são necessários, não algumas horas somente, mas meses e anos, para lhe sondar todos os arcanos. Por aí se pode apreciar o grau de saber e o valor da opinião dos que se atribuem o direito de julgar, porque viram uma ou duas experiências, as mais das vezes por distração ou divertimento. Dirão eles com certeza que não lhes sobram lazeres para consagrarem a tais estudos todo o tempo que reclamam. Está bem; nada a isso os constrange. Mas, quem não tem tempo de aprender uma coisa não se mete a discorrer sobre ela e, ainda menos, a julgá-la, se não quiser que o acoimem de leviano. Ora, quanto mais elevada seja a posição que ocupemos na ciência, tanto menos escusável é que digamos, levianamente, de um assunto que desconhecemos.
14. Resumimos nas proposições seguintes o que havemos expendido:
  1. Todos os fenômenos espíritas têm por principio a existência da alma, sua sobrevivência ao corpo e suas manifestações.
  2. Fundando-se numa lei da Natureza, esses fenômenos nada têm de maravilhosos, nem de sobrenaturais. no sentido vulgar dessas palavras.
  3. Muitos fatos são tidos por sobrenaturais, porque não se lhes conhece a causa; atribuindo-lhes uma causa, o Espiritismo os repõe no domínio dos fenômenos naturais.
  4. Entre os fatos qualificados de sobrenaturais, muitos há cuja impossibilidade o Espiritismo demonstra, incluindo-os em o número das crenças supersticiosas.
  5. Se bem reconheça um fundo de verdade em muitas crenças populares, o Espiritismo de modo algum dá sua solidariedade a todas as histórias fantásticas que a imaginação há criado.
  6. Julgar do Espiritismo pelos fatos que ele não admite é dar prova de ignorância e tirar todo valor à opinião emitida.
  7. A explicação dos fatos que o Espiritismo admite, de suas causas e conseqüências morais, forma toda uma ciência e toda uma filosofia, que reclamam estudo sério, perseverante e aprofundado.
  8. O Espiritismo não pode considerar crítico sério, senão aquele que tudo tenha visto, estudado e aprofundado com a paciência e a perseverança de um observador consciencioso; que do assunto saiba tanto quanto qualquer adepto instruído; que haja, por conseguinte, haurido seus conhecimentos algures, que não nos romances da ciência; aquele a quem não se possa opor fato algum que lhe seja desconhecido, nenhum argumento de que já não tenha cogitado e cuja refutação faça, não por mera negação, mas por meio de outros argumentos mais peremptórios; aquele, finalmente, que possa indicar, para os fatos averiguados, causa mais lógica do que a que lhes aponta o Espiritismo. Tal crítico ainda está por aparecer.
15. Pronunciamos há pouco a palavra milagre; uma ligeira observação sobre isso não virá fora de propósito, neste capítulo que trata do maravilhoso.
Na sua acepção primitiva e pela sua etimologia, o termo milagre significa coisa extraordinária, coisa admirável de se ver. Mas como tantas outras, essa palavra se afastou do seu sentido originário e hoje, por milagre, se entende (segundo a Academia) um ato do poder divino, contrário às leis comuns da Natureza. Tal, com efeito, a sua acepção usual e apenas por comparação e por metáfora é ela aplicada às coisas vulgares que nos surpreendem e cuja causa se desconhece. De nenhuma forma entra em nossas cogitações indagar se Deus há julgado útil, em certas circunstâncias, derrogar as leis que Ele próprio estabelecera; nosso fim é, unicamente, demonstrar que os fenômenos espíritas, por mais extraordinários que sejam, de maneira alguma derrogam essas leis, que nenhum caráter têm de miraculosos, do mesmo modo que não são maravilhosos, ou sobrenaturais.
O milagre não se explica; os fenômenos espíritas, ao contrário, se explicam racionalissimamente. Não são, pois, milagres, mas simples efeitos, cuja razão de ser se encontra nas leis gerais. O milagre apresenta ainda outro caráter, o de ser insólito e isolado. Ora, desde que um fato se reproduz, por assim dizer, à vontade e por diversas pessoas, não pode ser um milagre.
Todos os dias a ciência opera milagres aos olhos dos ignorantes. Por isso é que, outrora, os que sabiam mais do que o vulgo passavam por feiticeiros; e, como se entendia, então, que toda ciência sobre-humana vinha do diabo, queimavam-nos. Hoje, que já estamos muito mais civilizados, eles apenas são mandados para os hospícios.
Se um homem realmente morto, como dissemos em começo, ressuscitar por intervenção divina, haverá aí verdadeiro milagre, porque isso é contrário às leis da Natureza. Se, porém, tal homem só aparentemente está morto, se ainda há nele um resto de vitalidade latente e a ciência ou uma ação magnética consegue reanimá-lo, um fenômeno natural é o que isso será para pessoas instruídas. Todavia, aos olhos do vulgo ignorante, o fato passará por milagroso, e o autor se verá perseguido a pedradas, ou venerado, conforme o caráter dos indivíduos. Solte um físico, em campo de certa natureza, um papagaio elétrico e faça, por esse meio, cair um raio sobre uma árvore e o novo Prometeu será tido certamente como senhor de um poder diabólico. E, seja dito de passagem, Prometeu nos parece, muito singularmente, ter sido um precursor de Franklin; mas, Josué, detendo o movimento do Sol, ou, antes, da Terra, esse teria operado verdadeiro milagre, porquanto não conhecemos magnetizador algum dotado de tão grande poder, para realizar tal prodígio.
De todos os fenômenos espíritas, um dos mais extraordinários é, incontestavelmente, o da escrita direta e um dos que demonstram de modo mais patente a ação das inteligências ocultas. Mas, da circunstância de ser esse fenômeno produzido por seres ocultos, não se segue que seja mais miraculoso do que qualquer dos outros fenômenos devidos a agentes invisíveis, porque esses seres ocultos, que povoam os espaços, são uma das potências da Natureza, potências cuja ação é incessante, assim sobre o mundo material, como sobre o mundo moral.
Esclarecendo-nos com relação a essa potência, o Espiritismo nos dá a explicação de uma imensidade de coisas inexplicadas e inexplicáveis por qualquer outro meio e que, à falta de toda explicação, passaram por prodígios, nos tempos antigos. Do mesmo modo que o magnetismo, ele nos revela uma lei, se não desconhecida, pelo menos mal compreendida; ou, mais acertadamente, de uma lei que se desconhecia, embora se lhe conhecessem os efeitos, visto que estes sempre se produziram em todos os tempos, tendo a ignorância da lei gerado a superstição. Conhecida ela, desaparece o maravilhoso e os fenômenos entram na ordem das coisas naturais. Eis por que, fazendo que uma mesa se mova, ou que os mortos escrevam, os espíritas não operam maior milagre do que opera o médico que restitui à vida um moribundo, ou o físico que faz cair o raio. Aquele que pretendesse, por meio desta ciência, realizar milagres, seria ou ignorante do assunto, ou embusteiro.
16. Os fenômenos espíritas, assim como os fenômenos magnéticos, antes que se lhes conhecesse a causa, tiveram que passar por prodígios. Ora, como os cépticos, os espíritos fortes, isto é, os que gozam do privilégio exclusivo da razão e do bom-senso, não admitem que uma coisa seja possível, desde que não a compreendam, de todos os fatos considerados prodigiosos fazem objeto de suas zombarias. Pois que a religião conta grande número de fatos desse gênero, não crêem na religião e daí à incredulidade absoluta o passo é curto. Explicando a maior parte deles, o Espiritismo lhes assina uma razão de ser. Vem, pois, em auxílio da religião, demonstrando a possibilidade de muitos que, por perderem o caráter de miraculosos, não deixam, contudo, de ser extraordinários, e Deus não fica sendo menor, nem menos poderoso, por não haver derrogado suas leis. De quantas graçolas não foi objeto o fato de São Cupertino se erguer nos ares! Ora, a suspensão etérea dos corpos graves é um fenômeno que a lei espírita explica. Fomos dele pessoalmente testemunha ocular, e o Sr. Home, assim como outras pessoas de nosso conhecimento, repetiram muitas vezes o fenômeno produzido por São Cupertino. Logo, este fenômeno pertence à ordem das coisas naturais.
17. Entre os deste gênero, devem figurar na primeira linha as aparições, porque são as mais freqüentes A de Salette, sobre a qual divergem as opiniões no seio do próprio clero, nada tem para nós de insólita. Certamente não podemos afirmar que o fato se deu, porque não temos disso prova material; mas, consideramo-lo possível, atendendo a que conhecemos milhares de outros análogos, recentemente ocorridos. Damos-lhes crédito não só porque lhes verificamos a realidade, como, sobretudo, porque sabemos perfeitamente de que maneira se produzem. Quem se reportar à teoria, que adiante expomos, das aparições, reconhecerá que este fenômeno se mostra tão simples e plausível, como um sem-número de fenômenos físicos, que só parecem prodigiosos por falta de uma chave que permita explicá-los.
Quanto à personagem que se apresentou na Salette, é outra questão. Sua identidade não nos foi absolutamente demonstrada. Apenas reconhecemos que pode ter havido uma aparição; quanto ao mais, escapa à nossa competência. A esse respeito, cada um está no direito de manter suas convicções, nada tendo o Espiritismo que ver com isso. Dizemos tão-somente que os fatos que o Espiritismo produz nos revelam leis novas e nos dão a explicação de um mundo de coisas que pareciam sobrenaturais. Desde que alguns dos que passavam por miraculosos encontram, assim, explicação lógica, motivo é este bastante para que ninguém se apresse a negar o que não compreende.
Algumas pessoas contestam os fenômenos espíritas precisamente porque tais fenômenos lhes parecem estar fora da lei comum e porque não logram achar-lhes qualquer explicação. Dai-lhes uma base racional e a dúvida desaparecerá. A explicação, neste século em que ninguém se contenta com palavras, constitui, pois, poderoso motivo de convicção. Daí o vermos, todos os dias, pessoas, que nenhum fato testemunharam, que não observaram uma mesa agitar-se, ou um médium escrever, se tornarem tão convencidas quanto nós, unicamente porque leram e compreenderam. Se houvéssemos de somente acreditar no que vemos com os nossos olhos, a bem pouco se reduziriam as nossas convicções.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

GH-609-Espíritos da Noite


O Livro dos Espíritos

Parte Primeira – As Causas Primárias

Capítulo 1 – Deus

Deus e o infinito – Provas da existência de Deus – Atributos da Divindade – Panteísmo

Deus e o infinito

1 O que é Deus?
– Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.1
2 O que devemos entender por infinito?
– O que não tem começo nem fim; o desconhecido; tudo o que é desconhecido é infinito.
3 Poderíamos dizer que Deus é infinito?
– Definição incompleta. Pobreza da linguagem dos homens, que é insuficiente para definir as coisas que estão acima de sua inteligência.
☼ Deus é infinito em suas perfeições, mas o infinito é uma abstração. Dizer que Deus é infinito é tomar o atributo2 de uma coisa por ela própria, é definir uma coisa que não é conhecida por uma outra igualmente desconhecida.

Provas da existência de Deus

4 Onde podemos encontrar a prova da existência de Deus?
– Num axioma que aplicais às vossas ciências: não há efeito sem causa. Procurai a causa de tudo o que não é obra do homem, e a vossa razão vos responderá.
☼ Para acreditar em Deus, basta ao homem lançar os olhos sobre as obras da criação. O universo existe, portanto ele tem uma causa. Duvidar da existência de Deus seria negar que todo efeito tem uma causa e admitir que o nada pôde fazer alguma coisa.
5 Que conclusão podemos tirar do sentimento intuitivo que todos os homens trazem em si mesmos da existência de Deus?
– A de que Deus existe; de onde lhes viria esse sentimento se repousasse sobre o nada? É ainda uma conseqüência do princípio de que não há efeito sem causa.
6 O sentimento íntimo que temos em nós da existência de Deus não seria o efeito da educação e das idéias adquiridas?
– Se fosse assim, por que vossos selvagens teriam também esse sentimento?
☼ Se o sentimento da existência de um ser supremo fosse o produto de um ensinamento, não seria universal. Somente existiria naqueles que tivessem recebido esse ensinamento, como acontece com os conhecimentos científicos.
7 Poderemos encontrar a causa primária da formação das coisas nas propriedades íntimas da matéria?
– Mas, então, qual teria sido a causa dessas propriedades? Sempre é preciso uma causa primária.
☼ Atribuir a formação primária das coisas às propriedades íntimas da matéria seria tomar o efeito pela causa, porque essas propriedades são elas mesmas um efeito que deve ter uma causa.
8 O que pensar da opinião que atribui a formação primária a uma combinação acidental e imprevista da matéria, ou seja, ao acaso?
– Outro absurdo! Que homem de bom senso pode conceber o acaso como um ser inteligente? E, além de tudo, o que é o acaso? Nada.
☼ A harmonia que regula as atividades do universo revela combinações e objetivos determinados e, por isso mesmo, um poder inteligente. Atribuir a formação primária ao acaso seria um contra-senso, porque o acaso é cego e não pode produzir os efeitos que a inteligência produz. Um acaso inteligente não seria mais um acaso.
9 Onde é que se vê na causa primária a manifestação de uma inteligência suprema e superior a todas as inteligências?
– Tendes um provérbio que diz: “Pela obra reconhece-se o autor.” Pois bem: olhai a obra e procurai o autor. É o orgulho que causa a incredulidade. O homem orgulhoso não admite nada acima dele; é por isso que se julga um espírito forte. Pobre ser, que um sopro de Deus pode abater!
☼ Julga-se o poder de uma inteligência por suas obras. Como nenhum ser humano pode criar o que a natureza produz, a causa primária é, portanto, uma inteligência superior à humanidade.
Quaisquer que sejam os prodígios realizados pela inteligência humana, essa inteligência tem ela mesma uma causa e, quanto mais grandioso foro que ela realize, maior deve ser a causa primária. É essa inteligência superior que é a causa primária de todas as coisas, qualquer que seja o nome que o homem lhe queira dar.

Atributos da Divindade

10 O homem pode compreender a natureza íntima de Deus?
– Não, falta-lhe, para isso, um sentido.
11 Um dia será permitido ao homem compreender o mistério da Divindade?
– Quando seu Espírito não estiver mais obscurecido pela matéria e, pela sua perfeição, estiver mais próximo de Deus, então o verá e o compreenderá.
☼ A inferioridade das faculdades do homem não lhe permite compreender a natureza íntima de Deus. Na infância da humanidade, o homem O confunde muitas vezes com a criatura, da qual lhe atribui as imperfeições; mas, à medida que o senso moral nele se desenvolve, seu pensamento compreende melhor o fundo das coisas e ele faz uma idéia de Deus mais justa e mais conforme ao seu entendimento, embora sempre incompleta.
12 Se não podemos compreender a natureza íntima de Deus, podemos ter idéia de algumas de suas perfeições?
– Sim, de algumas. O homem as compreende melhor à medida que se eleva acima da matéria. Ele as pressente pelo pensamento.
13 Quando dizemos que Deus é eterno, infinito, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom, não temos uma idéia completa de seus atributos?
– Do vosso ponto de vista, sim, porque acreditais abranger tudo. Mas ficai sabendo bem que há coisas acima da inteligência do homem mais inteligente e que a vossa linguagem, limitada às vossas idéias e sensações, não tem condições de explicar. A razão vos diz, de fato, que Deus deve ter essas perfeições em grau supremo, porque se tivesse uma só de menos, ou que não fosse de um grau infinito, não seria superior a tudo e, por conseguinte, não seria Deus. Por estar acima de todas as coisas, Ele não pode estar sujeito a qualquer instabilidade e não pode ter nenhuma das imperfeições que a imaginação possa conceber.
☼ Deus é eterno. Se Ele tivesse tido um começo teria saído do nada, ou teria sido criado por um ser anterior. É assim que, de degrau em degrau, remontamos ao infinito e à eternidade.
É imutável; se estivesse sujeito a mudanças, as leis que regem o universo não teriam nenhuma estabilidade.
É imaterial, ou seja, sua natureza difere de tudo o que chamamos matéria; de outro modo não seria imutável, porque estaria sujeito às transformações da matéria.
É único; se houvesse vários deuses, não haveria unidade de desígnios, nem unidade de poder na ordenação do universo.
É todo-poderoso, porque é único. Se não tivesse o soberano poder, haveria alguma coisa mais ou tão poderosa quanto Ele; não teria feito todas as coisas e as que não tivesse feito seriam obras de um outro Deus.
É soberanamente justo e bom. A sabedoria providencial das Leis Divinas se revela nas menores como nas maiores coisas, e essa sabedoria não permite duvidar de sua justiça nem de sua bondade.

Panteísmo

14 Deus é um ser distinto, ou seria, segundo a opinião de alguns, resultante de todas as forças e de todas as inteligências do universo reunidas?
– Se fosse assim, Deus não existiria, porque seria o efeito e não a causa; Ele não pode ser ao mesmo tempo uma e outra coisa.
Deus existe, não podeis duvidar disso, é o essencial. Crede em mim, não deveis ir além, não vos percais num labirinto de onde não podereis sair, isso não vos tornaria melhores, mas talvez um pouco mais orgulhosos, porque acreditaríeis saber e na realidade não saberíeis nada. Deixai de lado todos esses sistemas; tendes muitas coisas que vos tocam mais diretamente, a começar por vós mesmos. Estudai vossas próprias imperfeições a fim de vos desembaraçar delas, isso vos será mais útil do que querer penetrar no que é impenetrável.
15 O que pensar da opinião de que todos os corpos da natureza, todos os seres, todos os globos do universo, seriam parte da Divindade e constituiriam, pelo seu conjunto, a própria Divindade, ou seja, o que pensar da doutrina panteísta?
– O homem, não podendo se fazer Deus, quer pelo menos ser uma parte d’Ele.
16 Aqueles que acreditam nessa doutrina pretendem nela encontrar a demonstração de alguns atributos de Deus. Sendo os mundos infinitos, Deus é, por isso mesmo, infinito; não havendo o vazio ou o nada em nenhuma parte, Deus está, portanto, em toda parte; Deus, estando por toda parte, uma vez que tudo é parte integrante de Deus, dá a todos os fenômenos da natureza uma razão de ser inteligente. O que se pode opor a esse raciocínio?
– A razão. Refleti maduramente e não vos será difícil reconhecer o absurdo disso.
☼ Esta doutrina faz de Deus um ser material que, embora dotado de uma inteligência suprema, seria em tamanho grande o que nós somos em tamanho pequeno. Uma vez que a matéria se transforma sem parar, se assim for, Deus não teria nenhuma estabilidade, estaria sujeito a todas as mudanças e variações, a todas as necessidades da humanidade, e lhe faltaria um dos atributos essenciais da Divindade: a imutabilidade. Não se pode imaginar que são as mesmas as propriedades da matéria e a essência de Deus, sem O rebaixar na nossa concepção. Todas as sutilezas do sofisma3 não conseguirão resolver o problema na sua natureza íntima. Não sabemos tudo o que Deus é, mas sabemos o que não pode deixar de ser, e a teoria do panteísmo está em contradição com suas propriedades mais essenciais; ela confunde o criador com a criatura, exatamente como se afirmasse categoricamente que uma máquina engenhosa fosse parte integrante do mecânico que a concebeu.
A inteligência de Deus se revela em suas obras como a de um pintor em seu quadro, mas as obras de Deus não são o próprio Deus, assim como o quadro não é o pintor que o concebeu e executou.

  1. O texto colocado após o travessão na seqüência das perguntas é a resposta que os Espíritos deram. O sinal indica que é um comentário de Kardec às respostas dos Espíritos (N. E.).
  2. Atributo: qualidade de um ser, aquilo que lhe é próprio. Neste caso, ser infinito é uma das qualidades de Deus entre todas as demais, mas não é só isso, ou não é o bastante para O concebermos (N. E.).
  3. Sofisma: argumento falso, enganoso, feito de propósito para induzir ao erro (N. E.).

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